ESTAMOS JUNTOS


Seguindo a silenciosa tendência do cinema nacional na última década, Estamos Juntos - filme vencedor do Cine PE deste ano - faz uma análise antropológica utilizando uma metrópole como cerne. São Paulo é o fio condutor da história, dividindo suas ruas com vidas corridas, corações frágeis e relações conturbadas, enquanto as câmeras captam singularidades da cidade - o tom acinzentado, o trânsito, os arranha-céus, etc.

O diretor Toni Venturi costura nichos sociais distintos da cidade utilizando a médica residente Carmen (Leandra Leal) como pilar da história. Entre palestras sobre saúde na base do movimento dos sem teto, as baladas onde seu amigo DJ Murilo (Cauã Reymond) se apresenta e a relação amorosa com o violoncelista Juan (Nazareno Casero), ela reflete sintomas comuns da vida urbana.
Nestas extremidades, Venturi não cria um senso de organização na narrativa. Alguns personagens ganham representação abstrata e enfraquecem a unidade, fora a insistência na representação dramática por meios domesticados; excesso de planos fechados com interferência de efeitos sonoros e, quando pertinente, diálogos que fogem a casualidade para ilustrar a inevitável fragilidade coletiva, auto-explicativo no título do filme.

Estamos Juntos é burocrático na construção do âmago de seus personagens, esquivando-se da persona e indo direto para as motivações e suas consequências. Neste conceito, é inevitável que o espectador fique inerte a pretensão e a superficialidade de seu estudo e atente às sugestões implícitas no roteiro.


Estamos Juntos (Idem, Brasil, 2011) de Toni Venturi

SE BEBER, NÃO CASE! - PARTE II


Se Beber, Não Case – Parte II já entra em campo com o jogo ganho. No primeiro capítulo da franquia, o diretor Todd Philips angariou personagens que marcassem por comportamento e psique distintas, o que lhe permitiu criar uma relação de intimidade entre eles e a platéia. Boa parte das melhores gags do filme são construídas e executadas dentro desta visão, onde a persona domina a situação, substituindo a ação pelo diálogo.

Philips não pisa no freio e escracha nas consequências da acidental noite de bebedeira. Por mais que Se Beber, Não Case – Parte II se encontre exclusivamente na esfera do escapismo, o longa se faz eloquente como afronta às falsas idéias norte-americanas em relação aos costumes asiáticos – incluindo crenças e conceitos de vida; no mesmo raciocínio, estão o duvidoso moralismo ocidental e a sustentabilidade passiva de pré-conceitos. Aqui, tais temas são apenas fontes de prazer através do riso, porém sutilmente abordados na narrativa.

Para resgatar o jovem Teddy, Phil (Bradley Cooper), Stu (Ed Helms) e Alan (Zach Galifianakis) desta vez passam pelas mais absurdas situações, como o envolvimento com o tráfico, prostitutas suspeitas, um macaco que fuma, tatuagem na face e membros amputados; tudo isso para curar uma amnésia alcoólica. Fora o perigo de vida que seu cunhado passa, Stu vê seu casamento prestes a ser cancelado.
Se a corrida contra o tempo é o termômetro do desenvolvimento narrativo, Philips não é pragmático e a história vira uma bagunça na metade final. Com o excesso de informações e a sensação decorativa criada ao decorrer do filme em torno dos protagonistas, o “jogo” que parecia tão fácil acaba virando uma vitória magra.

Se Beber, Não Case - Parte II (The Hangover Part II, EUA, 2011) de Todd Philips

ESTRADA PARA YTHACA


Se para Glauber Rocha o cinema novo tinha a motivação de unir características do “terceiro mundo” com a desconstrução de grandes movimentos cinematográficos como a Nouvelle Vague francesa e o Neorrealismo italiano para o protesto, para o grupo de diretores-atores de Estrada Para Ythaca, o entusiamo vem de utilizar as mesmas ferramentas para homenagear pioneiros do que chamamos de cinema marginal.

O próprio Glauber Rocha e Jean-Luc Godard ganham metáforas em forma de homenagem e agradecimento. A viagem de amigos para Ythaca a fim de relembrar um falecido companheiro, no fim, junto ao pulgente estado de luto onde o silêncio roga o incômodo e as frustrantes tentativas de reviver bons momentos de quem já se foi, vira um pedido de socorro ao cinema.

Cinema que permite que a magia os leve para Ythaca e escolha qual tipo de arte seguir, representado por uma bifurcação no meio do caminho. O mesmo cinema pode representar um espírito através de um tropeção no tripé da câmera ou simplesmente outra abordagem: a experimental. O caminho escolhido está explícito na primeira sequência do filme, quando cantam e recusam a morte entre um brinde e outro; o abstrato pode ser tão sublime em sua mensagem que é possível abraçar a plástica de momentos inusitados e nos levar para diversos debates, aqui, representado por Ythaca.


Estrada Para Ythaca (Idem, Brasil, 2010) de Guto Parente, Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diógenes

TRANSCENDENDO LYNCH


Apresentado como diário de turnê de divulgação do livro Em Águas Profundas, o documentário Transcendendo Lynch aborda de maneira dicotômica a exposição do cineasta David Lynch durante sua passagem pelo Brasil. Em suas palestras, o diretor de Cidade dos Sonhos e Veludo Azul mostra-se interessado em pregar uma nova interpretação de nossas rotinas através da meditação transcendental. Por outro lado, ele inevitavelmente passa por um teste de fogo contra seu estilo de vida ao repetir infinitamente ações como assinar livros, cumprimentar e tirar fotos com seus fãs. Lynch rapidamente se torna objeto de estudo no confronto da representação contra o conteúdo.

A abordagem dos fãs é de intimidade, bruscamente interrompida por um segurança ou agente. O que de fato interessa a eles e agora aos espectadores na sala de cinema é a relação de Lynch com os enigmas e abordagens líricas sempre presente em seus filmes. O diretor Marcos Andrade soube como inserir tal conteúdo dentro da proposta por questão de ritmo, já que automaticamente Lynch contorna estas questões e quase sempre volta ao tema que lhe interessa, o usando como suporte e espelho para boa parte das perguntas sobre sua filmografia.

Transcendendo Lynch mostra-se um trabalho preocupado com a estética. Se a decupagem mergulha nos gestos do diretor americano e de seus assessores, Andrade não utiliza imagens de arquivo ou cenas de filmes e adota citações imagéticas com alguns cacoetes característicos de Lynch em seus filmes, incluindo uma cena em que o protagonista vira cobaia de uma reconstituição. Nesta aposta, algumas sequências saturam pela duração, porém não interferem na experiência que não se apóia unicamente na cativante figura de seu protagonista, mas que ousa lírica e esticamente.

Transcendendo Lynch (Idem, Brasil, 2009) de Marcos Andrade

OS AGENTES DO DESTINO


O provérbio que é melhor não trocar o certo pelo duvidoso cabe ao diretor debutante George Nolfi, que se apega ao modelo constituído a levar grandes públicos às salas de cinema. Baseada na obra Adjustment Team de Philip K. Dick, Os Agentes do Destino, apesar de ensaiar imersões em analogias, se resume ao que se vê. Um filme de ação literal.

Sob o ritmo frenético da edição – se possível, atente ao intervalo entre os cortes, não há Mark Neveldine ou Brian Taylor que aguente –, Nolfi rege a história do deputado David Norris (Matt Damon) que é impedido de viver a paixão pela dançarina Elise Sellas (Emily Blunt) por conta do destino, aqui, personificado por agentes que zelam pela vida de um possível futuro presidente. Por trás da alusão religiosa e a lobotomia política, a engrenagem está mesmo na ação que Norris aos poucos cria para furar os bloqueios do “destino”.

Nolfi consiste seu trabalho à criação da aura fantástica ao protocolado thriller, baseado num imaginário coletivo, e que funciona muito bem. Damon e Blunt repetem os maneirismos que o modelo pede. A aventura segue linear e funcional até seu último ato, quando escorrega na maior obrigação do cinemão americano. Aparar horizontes pela cartilha neste caso também rende fraquezas ao roteiro. Porém, Os Agentes do Destino se impõe como escapismo e não como entusiasta da analise de conspirações.


Os Agentes do Destino (The Adjustment Bureau, EUA, 2011) de George Nolfi

CAMINHO DA LIBERDADE


Em sua filmografia, Peter Weir tem a característica de levar personagens a extremos para, então, estudar e exibir seus conflitos internos. Caminho da Liberdade mostra uma nova abordagem dentro desta logística de Weir: traçar um paralelo entre seus limites na adaptação da obra de Slavomir Rawicz.

Para reconstituir a história de fugitivos de Stalin que foram a pé da Sibéria até a Índia, Weir expõe seus personagens a cada minuto. Neste caso, a força do longa não está no martírio. O discurso libertário é silencioso. Através da luta pela sobrevivência destes homens – pestes, tempestades, fome, sede, calor, frio são alguns contratempos abordados –, fora o lado humano no qual a narrativa envolve até o mais duro dos corações, Weir passa do dogma de histórias de perseverança e superação.
A variável está nas elipses, que apresentam o desgaste físico e emocional, além da crescente empatia entre os personagens, que imediatamente se espelha no espectador. Neste momento, o fio político dá lugar ao existencial, onde o longa se sustenta pela força dos personagens.

Pela duração demasiadamente longa, Caminho da Liberdade soa redundante na abordagem dos conflitos. A narrativa intensifica as relações sem esbarrar em clichês deste subgênero e sai-se de forma articulada, com bom ritmo, e sabe medir as doses panfletárias.


Caminho da Liberdade (The Way Back, EUA, 2010) de Peter Weir

UMA MULHER, UMA ARMA E UMA LOJA DE MACARRÃO


Baseado em Gosto de Sangue de Joel e Ethan Coen, Uma Mulher, Uma Arma e Uma Loja de Macarrão é a transposição de referências ao longa de 1984 para o universo de Zhang Yimou em uma China de época.

Sob o contraste imagético da escuridão do longa dos Coen e a indecisão de Yimou em adotar cores ou acinzentar de vez a tela, o texto é irregular e dicotômico; abraçar, no lugar do humor negro – provavelmente a grande força do filme original ao lado da construção dos personagens –, o pastelão causa um choque difícil de ser recuperado. Quando o filme parece se firmar neste raciocínio, Yimou se distância da trama, escolhendo o silêncio como engrenagem narrativa.

Folclórico, o exercício plástico de Yimou dá margem a personagens vazios que não sustentam a história. Em planos abertos e com frequente uso de grua e planos-sequência, Uma Mulher, Uma Arma e Uma Loja de Macarrão é anti-climático e contemplativo, dispensando toda força narrativa presente em sua referência.


Uma Mulher, Uma Arma e Uma Loja de Macarrão (San qiang pai an jing qi, China, 2009) de Zhang Yimou

O RETORNO DE TAMARA


Abordar seu público com as respostas do fim e as motivações do princípio. O desenvolvimento de O Retorno de Tamara é o que interessa ao diretor Stephen Frears (A Rainha) como a fuga de uma retórica. Invertendo elementos básicos de uma comédia romântica, os personagens viram base para uma tese de lamentação – ou deboche – de nossa pobreza de espírito na adaptação da obra de Posy Simmonds.

Torpes, odiáveis e sempre desconfiados, os habitantes de um condado referenciado por um retiro de escritores vêem a chegada de Tamara como a inevitável catarse para tamanho conformismo; a beleza da protagonista é explorada como a óbvia dicotomia entre aparência e conteúdo, conflitando as facilidades que a beleza proporciona e a prepotência intelectual.

Frears é direto e ácido em suas críticas a partir do modelo escolhido e torna suas intenções mais explícitas com duas coadjuvantes que representam uma licença lisérgica ao texto – explorando a fragilidade e o desgaste de relações pela ironia, moldando o filme aos clichês e às reações exageradas que os leva de volta à dormência e ao conformismo.

O Retorno de Tamara é uma comédia de erros, onde a postura é carregada de indulgência culpável maquiada pela falácia. Como manda a cartilha, o fim é florido e encantado, mas o recado foi dado.


O Retorno de Tamara (Tamara Drewe, Reino Unido, 2010) de Stephen Frears

REENCONTRANDO A FELICIDADE


Rabbit Hole (título original do filme) é o termo utilizado para o uso de drogas ou para o túnel que levava Alice para um universo paralelo em Alice no País das Maravilhas. A metáfora usada por John Cameron Mitchell no filme adaptado da peça teatral de David Lindsay-Abaire é a da dimensão da dor.

Mergulhando no martírio emocional de um casal após a perda do filho, Mitchell vai, gradualmente, construindo a ambígua relação de Becca (Nicole Kidman em sua melhor atuação em anos) com o luto. Ela representa a ausência em todos os sentidos, gerando cenas memoráveis, onde o incômodo é pulgente. Com a recusa de enfrentar a dor, Becca suga o pessimismo e o transforma em conforto e egoísmo, vivendo em outra realidade confrontada por elementos externos: a gravidez da irmã, a precoce morte do irmão.

Howie (Aaron Eckhart em ótimo momento) representa a maior engrenagem da narrativa; Fora do Rabbit Hole, ele é resignado a passar pela dicotômica situação de tirar sua mulher desta imersão e o inevitável sofrimento pela ausência do filho. As cenas mais intensas estão nos conflitos indiretos do casal. As explosões são previsíveis, mas Mitchell sabiamente coloca o silêncio ou diálogos torpes como demonstração de insatisfação por parte de Howie, que também procura outras maneiras de descarregar – principalmente quando o tormento ganha personificação.

O título em português vem do reflexo natural de lutar e seguir em frente. Porém, o que o filme explora intensamente é o desconforto gerado por uma situação extrema e a relação de quem está próximo de um casal em luto em situações cotidianas.


Reecontrando a Felicidade (Rabbit Hole, EUA, 2010) de John Cameron Mitchell

NÃO SE PODE VIVER SEM AMOR


Em Não se Pode Viver sem Amor, Jorge Duran (Proibido Proibir) desbrava um Rio de Janeiro diferente da utopia de Carlos Saldanha e de campanhas publicitárias. Vemos uma cidade cinza, encardida e vazia, justificada pela proximidade do Natal, época que fragilidades emocionais são mais aparentes.

De narrativa fragmentada que levam ao previsível encontro dos núcleos no fim da trama – método popularizado por Alejandro González Iñárritu no ínicio da década passada, Duran procura o que lhe parece brusco: muitos closes, câmera trêmula e cortes secos, principalmente no primeiro ato, quando apresenta tortuosamente seus personagens. Em Não Se Pode Viver Sem Amor, a motivação vem entrelaçada aos atos de desespero (procurar o ex-marido em uma cidade desconhecida, se tornar um bandido para fugir com o grande amor ou largar a vida por um emprego na Suíça). O amor é coadjuvante e abstrato, tão qual a saída de Duran para desenvolver sua história.

Para suprir a explícita deficiência do texto, inserções lúdicas são atiradas ao espectador e mínguam o ritmo narrativo. Não existe lapidação no filme. A relação com os personagens é desgastada com inúmeros cortes. Neles, está uma poesia sem inspiração, ora de cunho social, ora existencial, como o espelho do personagem maior que é a cidade.  Declaração de experimentalismo ou fuga de dogmas a parte, nenhuma idéia se sustenta se não há um bom argumento. A última sequência serve como resumo do filme: anti-climático e nada eloquente.


Não se Pode Viver sem Amor (Idem, Brasil, 2010) de Jorge Duran

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