O PALHAÇO


Se existe alguma preocupação no sentido de construção narrativa em O Palhaço ela está no conflito parcialmente físico de Benjamim (Selton Mello) em relação à profissão de palhaço e diretor do circo Esperança. Acompanhamos a estadia da trupe circense por vilarejos do interior de Minas Gerais, onde a submissão ao acaso e contratempos realçam a insatisfação de seu protagonista.

Porém, a sutileza incrustada na narrativa está no conjunto de gags que ilustram a rotina de apresentações e ciladas no qual o grupo entra através das estradas e não por envolvimento com seus personagens. Podemos aí incluir as memórias de infância e inevitáveis comparações à Fellini pela incansável busca por cumplicidade neste grupo cheio de figuras emblemáticas, mas não reconhecíveis. O conflito de Benjamim é silencioso e forçado – com raras exposições envolvendo frases curtas e a materialização dele através da figura de um ventilador e de seu documento de identidade.

Essas gags configuram-se nas participações de grandes nomes do gênero como Moacyr Franco e Ferrugem, dicotômicos sob a ótica da vida – um disposto a brincar com o que é sério, já o outro deseja ser sério dentro de uma brincadeira – e simbolizam bem a questão da vocação profissional e de como ser feliz. O Palhaço acha sua resposta com ajuda dos coadjuvantes representativos e distanciamento de seu protagonista. Mas, como se trata de uma viagem, não importa como você vai chegar. O que importa é desembarcar são e salvo.

★★
O Palhaço (Idem, Brasil, 2011) de Selton Mello

O GERENTE


Antes de uma homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade, citado e exibido em O Gerente, a volta de Paulo Cezar Saraceni ao cinema após dez anos se apresenta como uma obra anárquica às convenções do cinema. Da narradora que “atrapalha” o espaço da ação e interage diretamente com o protagonista Samuel (Ney Latorraca), até a possibilidade de audição da voz do próprio Saraceni na cena que encerra o filme, o diretor insere a história que se passa nos anos cinquenta no contexto atual – apesar de seus personagens e contracenantes estarem a caráter, nada ao redor é maquiado. É possível ver carros, lojas e roupas dos dias atuais sem que isso interfira diretamente no filme. Para Saraceni, o que implica o pensamento de despreocupação nada mais é que um trampolim de questionamentos sobre a liberdade.

Enquanto a história de um gerente de banco que alimenta a tara por mãos femininas ganha a tela, paralelamente e sem altruísmo algum, brotam críticas ao sistema de incentivo a cultura, a pureza de trocas de planos e polimento de imagens e a prisão de gêneros. Em O Gerente é possível alinhar a mise en scene opositora à dramaticidade – deliciosa, por sinal – a troca de lentes de câmera e atemporalidade.

O vigor de O Gerente está nesta idéia de articular as possibilidades que se justificam pelo cinema que, nesse caso, livra-se da nostalgia da época, encontra passado e presente (essencial para o tom fabuloso do filme), faz seu público lembrar-se da presença da câmera e de um diretor, que se proclama dono de um cinema corajoso e vital com uma só frase, dispensando signos e enigmas. Para Saraceni, um nauseante bom humor é o carro chefe de seu filme.

★★★★
O Gerente (Idem, Brasil, 2011) de Paulo Cezar Saraceni

CORPO PRESENTE


 Uma noite sem dormir. Um dia ruim. O trabalho que não te completa. A ríspida sensação de existência. Um sintoma dominante na rotina das grandes cidades. Corpo Presente é um filme sufocante, como a longa espera para o fim do dia, o fim da semana, o desatar do nó da gravata – o encontro do coletivo com o indivíduo.

O longa dirigido por Marcelo Toledo e Paolo Gregori se sustenta à criação de uma segunda vida, a literal busca pela realização do sonho. Dividido em três segmentos (Alberto, um agente funerário, viciado e fugitivo de agiotas; Cynthia, manicure e garota de programa que sonha em ser dançarina e Beatriz, peoa que deseja viver de um estilo alternativo, fora do comum “8 às 17”), cada um deles tem uma forma diferente de fuga do real e claro, de morte. Afinal, é necessário que o real volte a dominar – representada por uma tradicional tempestade de fim do dia na capital paulista.

E Toledo e Gregori sabem como transportar a sensação de pequeneza que os personagens assumem para si; a megalópole os engole, como as obrigações e a vontade de viver no que é paralelo. A tela envolve Alberto, a maquiagem protege Cynthia, a chuva afasta Beatriz. A pungente duplicidade que rege o “horário comercial”.

 ★★★
Corpo Presente (Idem, Brasil, 2010) de Marcelo Toledo e Paolo Gregori

A NOITE DO CHUPACABRAS


A receita que transformou Mangue Negro, primeiro longa-metragem dirigido por Rodrigo Aragão, instantaneamente num filme cultuado nos circuitos de festivais se repete em A Noite do Chupacabras: brasilidade, sangue e diversão.

O longa se apoia na aura novelesca – traduzida na rivalidade entre duas famílias por um vasto terreno em uma floresta – para justificar o banho de sangue em cenas memoráveis, mesclando tradicionalismos do gênero: tosqueira, palavrões, humor e miolos. Rodrigo Aragão desta vez se mostra mais preocupado com a concepção do projeto: planos, sequências, efeitos e a congruência entre violência e humor estão mais uniformes na inevitável comparação com seu antecessor.

A figura do Chupacabras representa a justiça feita na base da violência – impedida por uma trégua entre as famílias.  O bichano não aparece no filme como fonte gratuita de terror, tanto que suas aparições são raras. O roteiro, assinado pelo próprio Aragão, não é tão bem transportado para a tela quanto é resolvido. O excesso de fades e as sequências de ação construídas com os mesmos aspectos (incluindo a trilha sonora) aos poucos se desgastam, transparecendo na narrativa - principalmente no último ato, quando o protagonista Douglas (Joel Caetano) ganha desconstrução de seu lado emocional.

Tropeços à parte, A Noite do Chupacabras é um filme divertidíssimo e resgata a despretensão do terror, hoje tão moldado para o sucesso. É questão de tempo para o longa ser tão reconhecido quanto Mangue Negro.

★★★
A Noite do Chupacabras (Idem, Brasil, 2011) de Rodrigo Aragão

OS RESIDENTES


A emblemática cena final de Os Residentes de Tiago Mata Machado deixa explícito: trata-se de um longa em intensa desconstrução. Tiago desafia seu público. Passa por cima das sequências; gentilmente pede para que nos esqueçamos das elipses. Inspire e crie sua capacidade de compreensão de arte e mercado. O que se vê é o que se sente? A conclusão é sua.

Os Residentes são ativistas, guerrilheiros. Temos esta noção no meio do filme, quando transparece seu único fio narrativo. Nele há uma relação ambígua com a liberdade e ética, rendendo a cena chave do filme, uma longuíssima e banal (e proposital) discussão de relacionamento.

“Experimente!”, grita um deles. Mesmo agarrado às comparações ao diretor Jean-Luc Godard por sua esfera livre às interpretações e a justaposição narrativa que rendeu comparações por toda crítica após as exibições Mostra de Cinema de Tiradentes (da qual saiu vencedor da Mostra Aurora), Os Residentes é sim um filme que inspira um caminho próprio e que duvida dele mesmo. Da compreensão, de seus tropeços e da realidade transposta, como a passeata falida – outro pilar do filme – representa. Basta saber se tudo isso é a síntese de uma postura pró-revolução artística ou puro exercício.

★★★
Os Residentes (Idem, Brasil, 2011) de Tiago Mata Machado

DARK HORSE


Transgressor na análise da sociedade americana, Todd Solondz parece entrar em crise. Se a clara falta de criatividade motivou o encontro dos personagens de Felicidade anos mais tarde em A Vida Durante a Guerra, Dark Horse parece uma releitura sem inspiração de suas obras.

Utilizando a derrota como filão narrativo que permeou seus personagens por duas décadas, Solondz analisa sua matéria-prima desta vez. Dark Horse (termo dado aos cavalos azarões em corridas) usa o colecionador de bonecos Abe (Jordan Gelber) como representação dos sentidos que a derrota domina na vida de uma pessoa: negação, fantasia, teimosia e aceitação. Apaixonado pela aspirante a escritora e vítima da depressão Miranda, Abe orquestra seu futuro conforme a utopia do novo mundo – viver na casa dos pais, esperar a mudança ou a morte deles e continuar a escada do nepotismo na empresa do pai.

Os macetes de Solondz continuam intactos – o humor negro desconcertante, as alusões à pobreza de espírito e o pessimismo americano – e seguem uma fórmula desgastada com o tempo. Dark Horse, apesar de ser mais implícito, mostra o diretor batendo na mesma tecla de sempre e com a metodologia de sempre. Talvez Solondz saiba disso, se levar a sério a sequência final de seu filme.

★★
Dark Horse (Idem, EUA, 2011) de Todd Solondz

TERRI


Terri (Jacob Wysocki) vive recluso. Faz-se excluso. Orfão, ele passa seus dias trancado no quarto da casa onde vive com seu tio, vítima do Alzheimer. Apesar de sua personalidade reclusa, o acaso não é negado. Ele acha um passatempo, mas larga por completo de sua vaidade.

O roteiro de Patrick DeWitt cria elos entre as diversas fraquezas de Terri, mas não as explora a fundo. Para o diretor Azazel Jacobs, é mais importante criar ternura e uma narrativa agridoce, usando elementos delicados quando o sistema educacional é o local de seu desenvolvimento. Do gosto a caça a ratos até a paixão pela menina Heather, o menino cria laços de amizade e não se intimida as demonstrações de afeto, principalmente pelo conselheiro Mr. Fitzgerald (John C. Reilly).

Azazel Jacobs leva a derrota – termômetro mais usado nas comédias independentes americanas contemporâneas – ao seu extremo e questiona se a imagem condiz com a verdade. Como a sequência chefe do filme representa, Terri está ali para todos. Um amigo de todos. Basta aprender a ser amigo dele mesmo.

★★★
Terri (Idem, EUA, 2011) de Azazel Jacobs

MADAME X


Um bem humorado protesto contra a intolerância na Indonésia. Madame X conta a fantástica história do cabeleireiro e cross-dresser Adam que é atacado por integrantes de um partido homofóbico no dia de seu aniversário.

Atrás de sua dignidade e proteção, Adam se transforma em Madame X – uma alusão ao seu passado traumático e com seu kit de maquiagem, usa o absurdo como seu maior aliado para as risadas. Nada novo quando a opção sexual e a comédia se aliam e criam um subgênero. Visualmente, Madame X usa os videogames como maior referência – mais explícita no último ato, quando a ação toma conta da narrativa.

O escracho está lá para levar sua posição à tolerância ao extremo. Aqui, os personagens levam as gírias ao pé da letra e viram purpurina e ganham asas para subir ao céu ou usam bolsas e secadores como armas de luta. Não espere inovações, apenas considere o cunho social de um filme divertidíssimo.

★★★
Madame X (Idem, Indonésia, 2010) de Lucky Kuswandi

L.A ZOMBIE

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Bruce LaBruce tem em seu currículo aproximadamente uma dezena de filmes, mas pode ser considerado, antes de tudo, um fashionista. Monotemático, suas obras têm como cargo chefe a extrema estilização visual de fetiches que assumem a postura multimídia do diretor como realizador de exposições e fotógrafo.

L.A Zombie
caberia perfeitamente como um transgressor vídeo de moda. Ao menos, suas locações serviriam para vários ensaios fotográficos. Junte à trilha lounge – que aumenta a sensação de assistirmos um filme pornô, e temos o âmago da carreira de LaBruce.

As corriqueiras inserções críticas desta vez vêm no formato de resgate; o zumbi (vivido por François Sagat, astro pornô e protagonista de Homem no Banho de Christophe Honoré) ressuscita vítimas fatais de acidentes, da violência ou do descaso introduzindo seu pênis dentro das feridas. Sem narrativa, L.A Zombie toma a postura de mais um filme experimental e que ganha o status de arte pela ousadia e o paralelo entre a dureza do mundo com o método muito original de resgatar vidas. Para LaBruce, é chegada a hora de renovar.

L.A Zombie (Idem, Alemanha/EUA, 2010) de Bruce LaBruce

SEITA MORTAL


Em certo momento de Seita Mortal, Kevin Smith utiliza um versículo bíblico, que conta em forma de parábola o fim de um momento ruim usando a passagem da primavera para o verão. Serve como alusão à carreira do próprio Smith, que sucumbe às tentativas frustradas de resgate ao êxito de críticas na década de 90 para um recomeço, mesmo que seja breve, afinal o diretor anunciou sua aposentadoria para 2014, ano que pretende terminar as filmagens da segunda parte de Hit Somebody.

Seita Mortal denuncia a distorção de mandamentos religiosos como sustentação para a intolerância e conseqüentes ataques contra homossexuais. O escracho outrora usado em Dogma se transforma em fina ironia enquanto analisa a facilidade de resolução de casos policiais envolvendo religião após os ataques de 11 de setembro. O cerne da história está numa igreja localizada num condado distante de Nova Jersey (cidade natal de Smith), comandada pelo pastor Abin Cooper (Michael Parks), entusiasta da condenação eterna para os pecadores e que usa sua “aproximação” de Deus para configurar seus seguidores e familiares como um grupo terrorista.

Smith além de abordar novas linguagens para sua obra – planos, desenho de câmera, edição – e que condizem com a força narrativa que flerta com o terror, mas que se explicita como um manifesto e assim não traça fronteiras para expor suas idéias; compara o radicalismo religioso ao nazismo, os princípios de bom senso que são quebrados por conta do ilusionismo que um homem pode trazer (onde as trombetas de Apocalipse regem a melhor cena do filme) e a influência da TV e da imprensa nesses casos.

Compacto, o roteiro evita gratuidades e utiliza o menor dos artifícios para costurar a história. Cada segundo serve como um impulso para mais tarde ser desconstruído como uma forma de protesto contra o abuso de poder, seja policial, de imprensa ou da religião. É muito bom ver Kevin Smith de volta. Mesmo que seja longe das comédias.

★★★★★
Seita Mortal (Red State, EUA, 2011) de Kevin Smith

CHAPEUZINHO VERMELHO DO INFERNO


Anacrônico às óticas reflexivas, Chapeuzinho Vermelho do Inferno é um filme facilmente associado ao gratuito. A estética artesanal e a subversão do conto de Charles Perrault remetem ao terrir, provavelmente o mais anárquico gênero do cinema. Porém, os raros banhos de sangue têm um propósito diferente pelas mãos de Jorge Molina.

O diretor afronta moralismos com cenas de estupro, incesto e zoofilia e esquece-se do subtexto. Afinal, qual é o alvo de Molina? O humor vem do desconcerto, do desconforto. A trivialidade é composta pelas inúmeras sequências de insinuações sexuais e a rasa relação da família, historicamente apoiada na religião – tangente que produz o grande respiro do filme, numa sequência em que o humor, de fato, está presente.

Chapeuzinho Vermelho do Inferno utiliza todos os clichês sem um propósito claro; É uma armadilha do diretor ou uma sátira? Perguntas como essa rodeiam o longa, que em nenhum momento deixa claro o seu objetivo. A gratuidade é uma óbvia associação.


Chapeuzinho Vermelho do Inferno (Molina's Ferozz, Cuba/Costa Rica, 2010) de Jorge Molina

CULPADA POR ROMANCE


Sion Sono é um diretor fugitivo da temeridade. Suas críticas ácidas com subtexto rico e teias narrativas coesas mostram-se intactas em Culpada por Romance. Os diversos caminhos traçados por Sono colocam o tema protofantástico que envolve a transformação de uma mulher casada com um escritor de romances amedrontada pela rotina que entra para o mundo da prostituição pela necessidade de se sentir viva como cerne de um estudo que envolve pecados hereditários.

A digressão da história é representada pela separação em capítulos e a troca de foco, sempre apoiada no humor de duplo sentido – amplificado pelas cenas de erotismo. O elo está no crescente caos em torno da investigação do assassinato num prostíbulo misterioso.

O conceito bíblico que contorna a culpa e o pecado serve como fusão ao deboche – que transforma um simples lanche em família numa troca de ofensas hilária e igualmente brutal. Uma marca da autoria de Sono. Nesta ideia, Sono une conflitos existenciais sob os sinais estilísticos de um pesadelo com espaço suficiente para utilizar a poesia como alusão ao peso da culpa. E esta salada que a priori daria uma confusão de gêneros se sobressai como um pungente thriller que livremente passeia por motivações distintas, trabalhando vagarosamente cada um deles e assim, entrega uma conclusão coerente e instigante.

★★★★
Culpada Por Romance (Knoi no Tsumi, Japão, 2011) de Sion Sono

MISS BALA

Outrora considerada estética marginal ou o ode à sujeira pelos os mais puritanos, a ideia de Miss Bala, hoje, é suficiente para leva-la à candidatura ao Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro pelo México. Esta configuração se tornou um subgênero e hoje, com o apoio de grandes estúdios que ao envernizá-lo, leva filmes com esta característica ao êxito comercial; uso os exemplos de Traffic e Tropa de Elite, aproveitando a temática do filme de Gerardo Naranjo para citá-los. Câmera na mão, planos muito fechados, edição frenética e no caso de Miss Bala, a escuridão para alinhar a persona de Laura (Stephanie Sigman), aspirante a miss da Baixa Califórnia que se envolve no mundo de corrupção do tráfico de drogas.

Naranjo lapida os diálogos de sua protagonista; deixa que o derredor fale por ela. Vítima do acaso, ela se torna bode expiatório do grupo La Estrella, o mais perigoso cartel do México, que como qualquer outro país latino-americano, tem ligações com instituições e pode tornar o sonho de Laura em realidade. O desenvolver do longa de Naranjo ainda que implícito, não sai da obviedade – pontuado por sequências de ação que adormecem e se opõem ao lirismo imposto pela narrativa, elas são elucidativas para as articulações do filme, que no fim, espetaculariza a violência no México.

Intimidada pela drástica mudança em sua rotina, Laura está em campos fechados, impossibilitada de respirar pelas câmeras de Naranjo. Em boa parte, não mostra sua face por inteiro. Seu corpo fala mais que as motivações, afinal, ele é a ignição para os sonhos – o dela e dos bandidos. Quando vemos Laura em sua plenitude, iluminada por holofotes, teoricamente completa, Miss Bala transparece o vazio deste objetivo, afinal, ele é sobre os demônios que regem as diversas industrias do vício.

★★★
Miss Bala (Idem, México, 2011) de Gerardo Naranjo

VAMOS FAZER UM BRINDE


De entusiasta a realizador, passando pela produção e distribuição de filmes como L.A.P.A e Riscado e direção de incontáveis curtas-metragens, Cavi Borges chega ao seu debut diretorial de um longa de ficção pelo mesmo caminho que construiu sua carreira; o baixo orçamento de Vamos Fazer Um Brinde aspira a aura do it yourself e que consequentemente instiga a criatividade e o espírito de equipe. Uma vertente do cinema independente.

Vamos Fazer Um Brinde vem da utopia que o réveillon representa o recomeço. Em uma locação, Cavi e a co-diretora Sabrina Rosa unem personagens que dividem desta esperança sobre diferentes óticas. Um aspecto favorável para o filme, que preserva uma avalanche de saídas imediatas – ainda mais que o filme já faz. Porém, a visão destes personagens é superficial, ainda que sua intenção de quebra de estereótipos de raça e de orientação sexual seja bem sucedida – apenas a sobreposição do costumeiro erro de casting de novelas que utilizam negros como parte do núcleo periférico. Algo que Jorge Furtado faz em seus filmes há algum tempo.

A personagem Susana, vivida por Cintia Rosa, é a única que expõe duplicidade de conflitos. Sua insegurança transparece além das inúmeras ligações que faz para seu marido. De resto, o esforçado elenco composto por Ana Miranda, Fabricio Santiago, Juliana Alves e Roberta Rodrigues é imerso em lembranças rasas e temas corriqueiros como fidelidade, sexo e claro, amizade. A falta de empatia consumida pela rápida duração do filme vem da abordagem desses temas: impregnados pelo humor demarcado aos estereótipos de cada personagem (um tiro no pé de quem se intenciona a subverter esta ideia) e claro, a falsa ilusão do consumo de um momento dito especial. Ser feliz até meia noite é o que importa.


Vamos Fazer Um Brinde (Idem, Brasil, 2011)  de Cavi Borges e Sabrina Rosa

ALIEN LÉSBICA SOLTEIRA PROCURA


O crescimento orgânico do cenário independente americano alcançou patamares suficientes para que um filme como Alien Lésbica Solteira Procura passe pelo estranhamento de seu nome para algo cultuado pelos festivais de cinema. A diretora Madeleine Olnek mostra que bebe ainda de sua fonte primal – Jim Jarmusch talvez seja a maior referência, ainda que restrito, tenciona gênero e experimentalismo.

Não há fronteiras entre a comédia e o grotesco para Madeleine Olnek e neste caso, a idéia é ríspida. O fio de história – aliens que vêm à Terra para quebrar corações (no sentido figurado) para prevenir a camada de Ozônio de seu planeta – raramente serve de apoio para as inserções cômicas que não use a estranheza de costumes de humanos e extraterrestres.  Sem lidar de maneira frontal com o paralelo da diversificação sexual, Olnek cria personagens representativos à oposição – seguranças do governo americano destinados a distorcer a visão de populares às aparições de Óvnis, que explicitam às raízes de Olnek além da escolha da estética em preto e branco, sendo personagens exclusivamente avivados pelos diálogos, sem maiores representações; como exemplo, o suprassumo da carreira de Kevin Smith, “O Balconista”.

Alien Lésbica Solteira Procura não deixa claro a sua posição (qual e que); por assumir uma posição dita anárquica (sempre alimentada por seu argumento e título) que nada mais faz que construir uma sequência de gags monotemáticas e cansativas. O grande respiro de Olnek está justamente no resgate de uma aura nostálgica que no fim coroou a hoje falida Miramax.


Alien Lésbica Solteira Procura (Codependent Lesbian Space Alien Seeks Same, EUA, 2011) de Madeleine Olnek

HOMEM NO BANHO


Homem no Banho é o exercício anticonvenções de Christophe Honoré. Enquanto narra a espera de Emmanuel (vivido pelo ator pornô François Sagat) por seu namorado Omar, em visita a Nova Iorque por conta do lançamento de seu filme em um festival de cinema, o diretor aproxima sua realidade a experimentalismos e ideias metalinguísticas.

O formato digital encontra o tradicionalismo da câmera de cinema – uma analogia ao romantismo francês e o imediatismo americano – distinguindo a viagem de Omar como um vídeo diário à espera de Emmanuel como um relato cinematográfico. Ambas as histórias são recheadas de affairs que celebram a nudez e a liberdade sexual em um ensaiado e complexo sentimento de culpa, afinal, o fim para eles é anuente.

Honoré usa planos que privilegiam as arquiteturas das cidades e adota a câmera na mão como identidade. O mundo dos prazeres carnais de Homem no Banho transparece os desejos do diretor de se livrar das amarras de obrigações estéticas e narrativas; uma criativa forma expressar seus anseios profissionais descompromissadamente .

★★★
Homem no Banho (Homme au Bain, França, 2010) de Christophe Honoré

A OUTRA TERRA

 

Uma segunda chance. O espelho de nosso planeta ou “Terra 2” como ele é chamado em A Outra Terra representa um novo começo para Rhoda Williams (Brit Marling), jovem imersa numa realidade ardilosa após quatro anos presa por um acidente de carro que matou a mulher e o filho do músico John Burroughs (William Mapother).

Apesar do conflito entre realidade e um argumento fantástico, o estreante Mike Cahill utiliza câmera na mão, ajustes de foco e correções de quadro sem cortes ante a mise en scène como contraponto das cenas de plástica estonteante e remetente ao contemporâneo Melancolia, de Lars Von Trier. Abertamente uma escolha estilística, apesar de assimilar-se demais com o filme de Von Trier em certos momentos.  O longa de Cahill diversas vezes cai no evitável sintoma sentimentalista de analisar a descoberta de uma nova Terra pelo paralelo existencial com as questões que nos perseguem há anos quando o assunto é a vida em outros planetas.

Enquanto Rhoda e John se aproximam através de uma fraude criada pela moça – que curiosamente concorre a um prêmio que levará o vencedor a nova Terra, A Outra Terra flerta com a ficção científica, finalmente utilizando a relação entre os planetas, e exibe as falhas do roteiro para um final coerente e emergencial. Ah, se não fosse a dinâmica narrativa...

★★
A Outra Terra (Another Earth, EUA, 2011) de Mike Cahill

TIRANOSSAURO


O estreante diretor Paddy Considine mergulha nos paradoxos da sociedade para tirar à força os reais valores de um homem rancoroso marcado pelo passado e uma mulher submissa ao seu marido em Tiranossauro.

Sabiamente, o diretor cria nuances românticos não convencionais para afastar sua obra da crueza e do choque. Afinal, Joseph (Peter Mullan) e Hannah (Olivia Colman) são vítimas da violência sobre diferentes perspectivas. A instabilidade dos dois – também explorados de maneiras diferentes por Considine, os une, apesar de toda diferença. A subversão de valores e ideais aqui se torna referência para o desenvolvimento narrativo, leve e dinâmico, apesar da temática.

O grande acerto do filme é a equivalência entre ternura e rispidez sem cair em sentimentalismos. Seus personagens desconhecem o limite e se auto-sabotam quando bem entendem. Uma referência aos tempos atuais. Tiranossauro é pungente por suas conclusões pessimistas (e masoquistas) de auto-análise, tão frias e realistas como o mundo lá fora.

★★★★
Tiranossauro (Tyranossaur, Inglaterra, 2011) de Paddy Considine

GUN HILL ROAD


Ao retratar a contemporaneidade da periferia de Nova Iorque (Bronx), Rashaad Ernesto Green é categórico e alegórico em Gun Hill Road. Com desenvolvimento narrativo que impressiona pelo dinamismo – mérito para o bom elenco encabeçado pelo garoto Harmony Santana, o longa tem o contraponto de se revestir de saídas metódicas para os conflitos do protagonista vivido por Esal Morales.

Gun Hill Road narra a volta de Enrique para casa após anos preso. Ao chegar, encontra sua mulher distante, a vizinhança mais violenta e seu filho em fase de troca de sexo. Arquitetadas para serem vistas como um único conflito – representado pelo ferimento de sua honra, o filme é dicotômico na hora de entregá-lo para o público. Sua força é puramente imagética e está à margem de um texto batido, sem inspiração.

As possibilidades criadas para uma possível “cura” das frustrações de Enrique são imediatas e rasas – cabe aqui perguntar se a postura tough do homem latino ainda é retrógrada desta maneira – mas ainda válidas. Apesar de ensaiar um flerte com o melodrama por aspectos offscreen, Ernesto Green tem tempo para reverter esta idéia e entregar um filme que é bem sucedido em sua metodologia que busca a funcionalidade no sentido de imersão e não de impacto.

★★
Gun Hill Road (Idem, EUA, 2011) de Rashaad Ernesto Green

RAIVA

Dito como o primeiro filme de terror de Israel, Raiva reúne o pior que o  gênero amplificou para o mundo através dos americanos na década de 70. A premissa de um filme slasher – a caça a um sequestrador dentro de uma floresta –  logo é abortada para os diretores  Aharon Keshales e Navot Papushado criarem um roteiro intencionado ao choque imagético sem um pingo de originalidade ou a busca por identidade.

Lá estão policiais corruptos, jovens perdidos e garotas valentes. Como uma rodada gratuita de matanças, Raiva segue sem rumo até a possibilidade da última gota de sangue cair, sempre amarrado à previsibilidade que dezenas de filmes ajudaram a criar nos últimos 40 anos. Todas motivadas por intrigas e brigas repentinas.

Raiva, além de ser um filme sem inspiração e soar como uma cópia fraquíssima dos filmes que os contemporâneos Eli Roth e Rob Zombie pagam tributos incansavalmente, se leva a sério o bastante para não pegar o espectador pelos pés como Evil Dead, grande representante do terrir fez.


Raiva (Kalevet, Israel, 2010) de Aharon Keshales, Navot Papushado

ATÉ A CHUVA


A alcunha panfletária que cerca Até a Chuva, além de fazer papel social de maneira pertinente, salva o longa dirigido por Iciar Bollaín de cair no ridículo. Para relacionar o tempo à força retrógrada do ser humano, Bollaín leva uma equipe de cinema liderada por Costa (Luis Tosar) e Sebástian (Gael Garcia Bernal) que chega à Bolívia para filmar a história de um padre que enfrentou o exército católico liderado por Cristovão Colombo contra os índios durante a chegada do navegador à América.

Populares manifestam contra a privatização da distribuição de água no país sob forte vigilância da polícia e desdém do governo (baseado no fato ocorrido em 2001). Neste momento, a produção de um filme se transforma no encontro entre passado e presente – representada na melhor sequência do filme. Porém, Bollaín chega a ser impetuoso com sua própria obra ao romantizar este conflito. Fora a trilha adocicada e personagens que servem apenas como trampolim para o envolvimento emocional – esquecendo o lado político-social – do público, estão atreladas lições de moral e motivações saturadas no cinema.

Até a Chuva, assim, cria uma relação ambígua com sua posição; como manifesto, o longa tem seus momentos, principalmente quando constrói a persona de Daniel, líder do grupo ativista e um dos protagonistas do filme de Costa e Sebástian. Como romance, é forçado nos aspectos melodramáticos e torna-se um conto anacrônico por tamanha manipulação.

★★
Até a Chuva (También La Lluvia, Espanha/França/México, 2010) de Iciar Bollaín

MEU PAÍS


Sufocante. Esta é uma boa palavra para definir Meu País, estreia de André Ristum em longas de ficção. Não só pela representação do fim de um sonho e seus desdobramentos, mas pelo excesso de planos fechados e super closes.

Marcos (Rodrigo Santoro) e Tiago (Cauã Raymond) são asfixiados pela câmera de Ristum. Com a morte do pai, eles se encontram após anos de separação e vivem diferentes formas de ostentação da riqueza que a vida os proporcionou. Sempre em planos fechados, os dois vivem realidades distorcidas – e bastante distintas. Na construção de personas e desenvolvimento destes conflitos, Ristum opta por seguir um caminho silencioso. Sua força está nos pequenos detalhes das cenas – o que possibilita diversas interpretações ao filme.

Manuela (Debora Falabella em ótima atuação) serve como estopim para os irmãos, uma espécie de porto seguro e bomba-relógio para a relação dos irmãos, que assumem a dormência nos sentimentos familiares e lutam cada um a sua maneira, pelo bom senso. A sensibilidade que Ristum explora as memórias e a montanha russa de emoções é impressionante. Seus personagens são vulneráveis a qualquer tipo de reação e a constante dúvida da postura de cada um deles é angustiante para o espectador. Tudo isso para um fim que na primeira impressão pode ser poético e livre, porém, guarda forças descomunais para continuar com a dúvida do espectador e a dor dos irmãos.

★★★★
Meu País (Idem, Brasil, 2011) de André Ristum

VERMELHO, BRANCO E AZUL


Condutas questionáveis regem a narrativa de Vermelho, Branco e Azul. Uma garota que gosta de se relacionar sexualmente com desconhecidos. Um homem que gosta de “ajudar” estranhos e um rock star adicto e submisso à ideia de sucesso. Apoiado na estética dos bares do sul dos Estados Unidos (cenários de madeira, luz baixa com tons avermelhados) e edição que segue a cartilha dos videoclipes, o longa de Simon Rumley (Club Le Monde) peca pelo tempo perdido na associação às cores da bandeira americana.

O drama de seus personagens é apresentado por mais da metade do filme e passa longe da construção do suspense, gênero no qual o filme é associado e vendido. A crítica pseudo-social de Rumley desemboca em sequências de violência extrema que batem de frente com o moralismo e a ideia de liberdade dos americanos. Se não houvesse a discrepância de gêneros – nada de errado em agregá-los, e sim como eles são posicionados na trama – Vermelho, Branco e Azul teria um impacto muito maior.

O encontro dos três protagonistas acontece no último ato do filme – logicamente, o momento de maior tensão do filme, esquecendo todo o drama construído anteriormente – e afasta o espectador, pois sua força vinha da carga dramática e não do terror. Portanto, fica claro que Rumley entrega uma obra explicitamente irregular; por gêneros, abordagens e intenções.

 ★★
Vermelho, Branco e Azul (Red, White and Blue, EUA, 2010) de Simon  Rumley

GANHAR OU GANHAR - A VIDA É UM JOGO


O retorno de Tom McCarthy à direção após o tocante O Visitante é uma gigantesca e morna alusão ao “jogo” da vida – no caso, o título em português faz o mesmo que o original: entrega o jogo logo de cara. Não que Ganhar ou Ganhar – A Vida é um Jogo fuja da mesmice lírica e esteticamente. McCarthy circunda sua obra da aura que identifica o dito cinema independente americano atualmente.

A história se passa no subúrbio americano, com personagens fracassados escondidos atrás de belas fachadas, com abordagem agridoce da dormência emocional do protagonista com trilha sonora proto-circense e a representação da esperança num personagem atípico a tal realidade.
Neste caso, o garoto Kyle (Alex Shaffer), que vai até Nova Jersey atrás de seu avô como refúgio do desdém de sua mãe, se torna a motivação para o advogado Mike Flaherty (Paul Giamatti) encontrar o êxito na carreira de técnico de luta greco-romana, além de ser um ótimo plano B para seu falido trabalho de advogado. A sucessão de alusões aos “Ganhar” do título são banais e desenvolvidas sem surpresas, porém, McCarthy sabe, mesmo com os contratempos da saturação narrativa, criar sustentações pertinentes e que ajudam o longa a escapar da prolixidade.

Os ótimos coadjuvantes dão o tom necessário para McCarthy ilustrar sua fábula moderna sobre o fracasso ao guardar a inerência ao tema na ironia e no rancor. Sem eles, a passividade dos personagens de Shaffer e Giamatti transformariam Ganhar ou Ganhar num filme dormente. Se o longa passa longe da originalidade, por outro tem coragem de largar vícios duvidosos de se fazer humor através do peso melodramático – principalmente pelo silêncio constrangedor em situações igualmente delicadas e grotescas. McCarthy quer diálogos e ação. Nada de ser implícito. E, se por acaso alguém possa se ofender, bem, é ponto para ele.

★★★
Ganhar ou Ganhar - A Vida É Um Jogo (Win Win, EUA, 2011) de Tom McCarthy

PEARL JAM TWENTY


Repórter musical durante a década de 80, Cameron Crowe (Vanilla Sky, Say Anything) volta a esfera musical visitada pela última vez em Quase Famosos para documentar de forma antagônica os vinte anos de carreira do grupo de Seattle Pearl Jam.

Crowe utiliza a proximidade com os músicos para colocar a posição do Pearl Jam – às vezes sobre a ótica de um integrante em particular, mesclando bom humor, saudosismo e postura anti-qualquer-coisa  – sobre as ondas que passou, representadas de forma literal pelo clipe de “Oceans” e do surfe, passatempo predileto do vocalista Eddie Vedder antes de entrar em estúdio.

Sem ordem cronológica, Pearl Jam Twenty mostra o grupo dentro do turbilhão grunge – que os levou para a capa da Time e para o cinema, fazendo parte de Singles – Vida de Solteiro, filme dirigido pelo próprio Crowe -, os inevitáveis atritos na estrada, as inúmeras trocas de bateristas – contadas de forma de sátira ao cinema mudo produzida pelo próprio Crowe -, a batalha com a Ticketmaster por ingressos mais baratos e antes de tudo, o embrião da banda, o Mother Love Bone.

Centrado no aprendizado que o tempo traz, o filme foge de assuntos delicados como a tragédia em Roskilde que matou nove fãs do grupo, a distribuição de discos piratas pela própria banda e a repercussão do clipe de “Jeremy”, baseado em um suicídio em um colégio de ensino-médio nos EUA. Crowe busca representar a autenticidade batalhada em longas turnês e traduzida pela longevidade. E como pilar, lógico, está Eddie Vedder, o bom moço que (in) conscientemente coloca seu falecido pai, Kurt Cobain e Neil Young como referências artísticas. Tal pose nos é empurrada em breves intervalos com performances ao vivo avassaladoras em alto e bom som de canções como “Black”, “Do the Evolution” e “Go”.

★★★
Pearl Jam Twenty (Idem, EUA, 2011) de Cameron Crowe

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