GLORIA




Gloria é um conto sobre a definição de ninho vazio que passa às margens da origem de seu principal conflito. Apesar da distância entre a protagonista que batiza o filme e seus filhos, o que permeia sua duração é a incessante tendência de Sebastián Lelio em manter a cordialidade entre seus dois polos (fim e recomeço) com certa ingenuidade. A tendência é, portanto, óbvia – escrever um filme rico em ternura e consequentemente de eixos dormentes. 


Certo de que não é preciso análise sobre os ensejos de Gloria e o que há ao seu redor – seja o vizinho ou o próprio Chile -, Sebastián Lelio vai ao cerne e apresenta Gloria com a necessidade de viver no polo que seus filhos deveriam estar. No tempo de realizações, os filhos refletem um desejo implícito de Gloria, que inverte os papéis por um comportamento infantil e perdido segundo a ultrapassada cartilha da terceira idade. A subversão neste caso é o grande trunfo do filme para sua superfície.


E é no modo que Lelio embala o filme que suas intenções são reveladas. Agridoce, repleto de referências temporais através de canções traduzidas em catarses de pura nostalgia e a aproximação de um tempo que não voltará. Tempo este que é abstrato o suficiente para Lelio construir antíteses através da esperança de novos ares, como uma silenciosa afirmação de um direito comum. 


Gloria torna-se o contrapeso de um mundo sem identidade, sem rumo, sem nenhuma certeza do que pode acontecer no próximo minuto. E curiosamente neste viés, Lelio adormece toda intenção de Gloria em crescer por ela mesma como brecha para o conflito que outrora faltara. O encontro com as chances de mudança é diário e nem sempre partirá da sua própria vida, pois ninguém será muleta para outra pessoa por muito tempo. É o suficiente para saber que Lelio escreveu um conto duro demais para sua casca fina.

Gloria (Idem, Chile/Espanha, 2013) de Sebastián Lelio

Cinema/Punk - Parte 1

Dizem que o punk nasceu em 1976 com o lançamento do primeiro álbum dos Ramones. Mas a verdade é que quando Legs McNeil e John Holmstrom fundaram o zine "Punk" em 1975 em um porão de Connecticut a rebeldia e a música que eliminava solos de guitarra e negava qualquer postura vendável já estavam lá com MC5 e os Stooges, para citar alguns nomes. Formado por boa parte de nerds fãs de quadrinhos ou leitores assíduos de autores que outrora batizaram a contracultura, o punk tinha mais fundamento em suas músicas curtas e diretas como um soco na cara. Elas amplificavam questões filosóficas adolescentes que de acordo com o sistema deveriam ser esquecidas em troca da vida adulta, onde vive-se para trabalhar e obedecer. Questionar, neste caso, é resistir. E o cinema tem parte desse caos muito mais organizado que muitos pensam. Diretores ao longo do tempo tomaram a identidade para si e a diluiram em narrativas e manifestos audiovisuais. São os casos de Nick Zedd, F.J Ossang, Alex Cox, Sogo Ishii, Penelope Spheeris, Amos Poe, Julien Temple, Bruce McDonald e Lech Kowalski, para citar alguns. E outros serviram de inspiração para os músicos ou para a postura (in)diretamente ligada à insatisfação.

Eis o início de uma lista (divida em 4 partes) com filmes que retratam o punk em diversas formas. Seja na música, no comportamento ou em sua essência abstrata.

 01. Burst City (Sogo Ishii, 1982)
Em um cenário pós-apocalíptico, rebeliões, shows de punk rock, brutalidade policial e brigas de gangue se misturam à lisergia de neon  japonesa.

O LOBO DE WALL STREET






Ao longo de sua carreira Martin Scorsese foi de Travis Bickle a Rubert Pupkin passando por Jesus Cristo e Dalai Lama com a intenção de aguçar um ponto de vista sobre histórias extraordinárias. E do maior circo de horrores americano surge Jordan Belfort. Dono do mesmo deus na barriga que Guido Anselmi em 8 ½ de Fellini, proprietário do mesmo circo, e refém da mesma ilusão.  E com ela Belfort adentra ao palco (ou escritório) diversas vezes, sob aplausos e com um microfone na mão. Wall Street é o picadeiro para o abismo moral em um país que a exalta.

O Lobo de Wall Street se divide em duas partes de maneira singela; monta a lona deste circo bizarro na primeira metade, onde apresenta os personagens e conta como Belfort virou o famoso “lobo”. Como John Ford, Scorsese, a sua maneira, filma a experiência americana. Suga o que há de melhor de Leonardo Di Caprio, Jonah Hill e até Matthew McConaughey em rápida aparição, porém marcante o suficiente para o que há de vir. Não há qualquer preocupação maior nesta montagem de lona há não ser conta-la com o maior número de detalhes possíveis. Desta maneira vem a posição multiforme do narrador, onde Belfort ganha outros meios de dialogar com o espectador e reforça sua identidade.
O protagonista é poderoso o bastante para se equiparar com o próprio Scorsese, tomando um conhecimento fantástico sobre a existência da narrativa – a interrompendo algumas vezes, inclusive. E de detalhes como este o filme tem abordagem amplificada enquanto ilustra a cada quadro como um abismo puxa outro. Afinal, a crueldade com que este frenético giro de capital acontece exige nervos adormecidos até mesmo para o mais preparado dos homens. 

Belfort reina em todos os mundos. Do céu ao inferno. Do mais luxuoso restaurante a nada glamurosa vida white trash. Como variação sobre o mesmo tema, Belfort contornou e lucrou de diversas formas e sem concessões. Geralmente as justificando como trâmites legais – embora este conceito seja altamente questionável, afinal os Estados Unidos sempre apoiarão formas de “reescrever” uma história após queda iminente. Elas também são lucrativas. 

E sobre esta queda que a segunda metade trata. A espécie de anti-herói do capital americano desenvolve pilares enfraquecidos. Scorsese tenta ilustrá-los com clara intenção de manter o tom ácido da primeira hora. O Lobo de Wall Street torna-se então uma simples história de causa e efeito. Como a simples escolha de investir e lucrar ou simplesmente perder tudo.  Belfort vai e volta dezenas de vezes com seu microfone, em pé, pronto para ser louvado e para motivar, ainda que não exista nada de genuíno em algo impalpável como os números de ações bancárias. Eis uma equipe fantasma que se revela humana através de necessidades. Financeiras, sexuais ou por vícios. E dela sai a mais representativa cena do filme, onde o protagonista se esforça em ser humano, se vangloriando de uma boa ação. 

Belfort liderou uma equipe que nuca permitiu se conhecer, apenas mergulhar de cabeça no desbunde. Os resultados permitiram que o mundo fosse deles, mesmo que desgovernado e com as vistas turvas graças a qualquer alucinógeno. E pela trivialidade que qualquer abordagem sobre consequências traz, O Lobo de Wall Street carece de sensibilidade não no encadeamento de seus dois polos, mas por perpetuar-se  com pulso onde a maior empreitada seria a de novamente compreender um mito e seus conflitos. 

O Lobo de Wall Street (Wolf of Wall Street, EUA, 2013) de Martin Scorsese

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