Rua Secreta (Vivian Qu, 2013)




Em entrevista a Grazia Paganelli, então programadora do Museu de Cinema de Turim publicada em Sinais de Vida: Werner Herzog e o Cinema (Indie Lisboa 70, 2008), Werner Herzog comenta sobre a principal percepção de Fata Morgana (1971): "Para recordar". Tal afirmação partiu de uma sugestão de Grazia sobre o filme: o que os olhos vêem e o que imaginam são dois caminhos diferentes. Em casos de registro de um estado de espírito, seja ele de um local, grupo ou apenas um personagem, pouco influenciaria a cronologia ou a quantidade de arcos narrativos ou subterfúgios dados ao padrão de simbolismos quando se trata de uma experiência metafísica. Rua Secreta é um caso de estrutura que se toma consciência à medida que este espírito é revelado. Este espectro é apresentado de forma que a política é parte indivisível das coisas e que a corrupção estará na direção do olhar (a cidade como nossa extensão), mesmo que o objetivo de uma vida seja fugir desta entidade. 

Desta forma é feita a transposição das ruas da China para um microorganismo - uma torta espécie de gangue -  cujo valorização do que se vê está atrelado ao diálogo direto com gêneros cinematográficos. Rua Secreta é, em síntese, feito de associações, justificado pela transformação de um roteiro linear em híbrido hermenêutico ao habitual escape da própria vida quando a colocamos em risco, diariamente, sem percebermos. Para isso, o filme de Vivian Qu, adormece esta percepção com outro diálogo ligado à essência e que transpassa a rotina com desejos de intensidades diversas. Um paradoxo ligado às mutações cabíveis muito mais ao roteiro que às emoções do dia-a-dia, e por isso, Rua Secreta é um filme que sobrevive na superfície.

Há a simetria para que Rua Secreta seja um filme de gangsteres, um romance inflado e ainda que contido, um discurso social. Um jogo comum e batido sobre o que se vê e o que se entende, como afirmara Grazia Paganelli, quando boa parte do que é visto aqui é colocado às avessas a cada "mudança de gênero". Inevitável é à associação ao discurso social em função de um tipo de panorama apressado mas suficiente para a noção de quem e como governa o país. Tudo passará por um "crivo", este que sempre terá o poder e o dinheiro como balança. Um serviço a queda de mitos aos quais nossos olhos estão acostumados a ver a cada esquina. Este olhar, objetivo, afirma que pouco importa o local; trata-se de um diagnóstico geral e extremamente pessimista.

E demorará para a tênue linha de equilíbrio narrativo ser transformada em decoração. O que em algum momento foi narrativa é logo transmutado para uma espécie de montes complementares, ou, como é dito e cabível a este, uma teia, um quebra-cabeça, quando todos seus elementos são exibidos. O fim do mistério do tal espírito, por fim, leva ao que mais importante Rua Secreta guarda: o diálogo com que há na tradição do cinema chinês contemporâneo (Jia Zhang-Ke, Wong Kar-Wai e Hou Hsiao-Hsien, em especial). É o fim da zona de conforto e da mudança em função da mobilidade que interessou a Vivian Qu.

O filme, por fim, está debruçado em um tipo de controle da História, de um sintoma geral (o desespero) aplicado às convenções, dadas as proporções, aos cineastas citados. Se vive na inospitalidade de Em Busca da Vida, se deseja como 2046 e sonha como Café Lumière.  Porém, não há espaço para discutir a memória em Rua Secreta. Há, no máximo, o instinto de sobrevivência, quando, enfim, o que está diante de nossos olhos, diariamente, é transformada em ameaça - nem constatação ou imaginação. O passado, está incrustado nas interferências e desconfortos de uma cidade (nunca identificada) que reverbera todas as ruas do mundo, que necessitam de uma reação - antes mesmo de enxergarmos ou respirarmos estas ruas.

Vulgar What?

Tropas Estelares (Paul Verhoeven, 1997)
Infelizmente só descobri recentemente esse Tumblr dedicado ao chamado Vulgar Auteurism. Ele existe desde junho de 2012 com a função de catalogar stills de filmes inseridos na abrangente lista de diretores/filmes que em comum têm apenas o fácil acesso ao público - casos de John Carpenter, Brian De Palma, John Woo, Walter Hill e Rob Zombie a se discutir - e a justificativa de fazer cinema de gênero. Muito se debate sobre a força das imagens estáticas e sua função perceptiva em comparação ao conjunto como forma de celebração às obras de tantos cineastas - destaco a comparação entre Falstaff - O Toque da Meia Noite de Orson Welles e Mortal Kombat de Paul W.S Anderson - e pouco se nota os parâmetros para inclusão de diretores com obras tão distintas como Abel Ferrara e M.Night Shyamalan, por exemplo. Este termo tampouco trata de um panorama do cinema comercial contemporâneo, pois em listas espalhadas pela internet nomes como Samuel Fuller e Michael Cimino aparecem com "autores vulgares" ao lado de Clint Eastwood, Paul Verhoeven, Farrelly Brothers e John Hyams. Talvez este seja o primeiro termo (movimento?) cinematográfico "batizado" pela internet, sem qualquer margem; não há  limites de data, estética ou filosofia, ainda que se discuta que tudo começou com a adoração dos críticos/realizadores da Cahiers du Cinéma pelos autores ("não vulgares") americanos. Em rápida checagem da página é notório que nesta lista existem diretores com preocupações distintas em relação à imagem (referências, o diálogo com a tecnologia, encenação/reencenação, plástica) e enfim, um ponto para dar o nó: todos eles se apoiam em discursos artísticos coesos com usos díspares de seus dispositivos, independente do conceito de marketing que os entregou ao público. E se pensarmos que, aos meandros de definição, poucos movimentos cinematográficos foram batizados por quem fazia os filmes e sim por críticos e pesquisadores os definindo por margens e similaridades - data, abordagem, discurso... O Vulgar Auterism é sim, uma ótima ferramenta de marketing para cinefilia ainda que a questão para onde os olhos miram realmente cabe a cada quadro, inclusive deste Tumblr. Discutir a qualidade de cada um destes filmes e diretores seria trabalho demais. Vale a visita ao site.

Mr. Turner (Mike Leigh, 2014)



Curioso ver Mr. Turner lançado direto em home video no Brasil ao mesmo tempo que Mais um Ano (2010), penúltimo longa de Leigh, estreia em circuito nacional. Mais uma questão de logística e falta de confiança no espectador, pois apesar de ambos seguirem a fórmula de diluição do drama através da trivialidade tão funcional quanto nos tempos de A Vida é Doce (1990), Mr. Turner mais parece uma catalogação natural de imagens em função do implícito conto de um homem contra o academicismo e qualquer farsa embutida em discursos críticos. Leigh opta por planos abertos - a pintura dentro do escopo, muitas vezes, literalmente -, não se priva em esbarrar em Pialat e Visconti e menos ainda para abordar um descontraído diálogo com a chegada do cinema. Mas, sim, há uma explicação para Mais um Ano chegar às telas no Brasil, mesmo com muito atraso: embora tão monocórdico quanto seus outros filmes, há uma ignorante dose de empatia na relação dos vizinhos e amigos, bem mais que o citado A Vida é Doce. Já Mr. Turner é o encontro de mais uma possiblidade para Leigh, que já foi de Simplesmente Feliz (2008) a Naked (1993) sem que sua marca fosse alterada; Mr. Turner pode ser o primeiro passo para um formato ainda mais aguçado e desafiador para Leigh como um grande compositor do indivíduo prosaico sobre a carcaça do mito.

Melhores Filmes de 2015 (Primeiro Semestre)

Filmes lançados no Brasil (circuito de cinema e home video) no primeiro semestre de 2015:

Menções honrosas: 

Leviatã (Andrey Zvyagintsev), Mad Max - Estrada da Fúria (George Miller),  Da Sweet Blood of Jesus (Spike Lee), Dois Dias, Uma Noite (Jean-Pierre e Luc Dardenne), Batguano (Tavinho Teixeira), Mr. Turner (Mike Leigh) e Éden (Mia Hansen-Love).

10. O Pequeno Quinquin (Bruno Dumont, 2014)

 09. Sniper Americano (Clint Eastwood, 2014)

 08. 14 Estações de Maria (Dietrich Bruggemann, 2014)

 07. Acima das Nuvens (Olivier Assayas, 2014)

  06. Foxcatcher (Bennet Miller, 2014) 

 05. Jornada ao Oeste (Tsai Ming-Liang, 2014) 

 04. Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2014)

 03. Últimas Conversas (Eduardo Coutinho, 2015)

 02. Jauja (Lisandro Alonso, 2014)

 01. Branco Sai, Preto Fica (Adirley Queirós, 2014)

Lançamentos em Video on Demand



Breves comentários sobre os lançamentos em Video on Demand no Brasil (maio e junho de 2015).

88 (Idem, Canadá, 2015) de April Mullen

Um filme básico sobre como a montagem pode subverter posições em um roteiro. A trama cerca as modulações de humor de uma garota que vai da violência extrema ao esquecimento completo (chamado de Síndrome da Fuga) e o costura basicamente por flashbacks como cânone narrativo. Se aproxima de uma paródia de um filme de ação dos anos 00, o que seria muito interessante, mas a intenção da jovem April Mullen (Dead Before Dawn, 2012) é mesmo estabelecer o paralelo entre tensão e montagem, sem muito sucesso.

Os Amigos (idem, Brasil, 2014) de Lina Chamie

Existe um motivo muito pertinente sobre a recusa da crítica e público ao filme de Lina Chamie: é um filme infantilóide. Não só por relacionar cada quadro à infância como principal arco dramático,  mas o que derruba Os Amigos são as alegorias escolhidas, com a questionável necessidade de tornar tudo em ilustração, em imagem, consequentemente enfraquecendo o texto. Sem limites, Chamie volta a câmera à obsessão em retratar o caos urbano cotidiano - assaltos, trânsito, ambiente de trabalho, bares -  e traçar o paralelo com estado de luto e a necessidade de seguir em frente do protagonista enquanto a nostalgia o acompanha,  muitas vezes, no sentido literal. Os Amigos mais parece uma colagem introdutória às intenções de Via Láctea e São Silvestre (este o ápice da carreira de Chamie até agora), do que um filme dado aos atores.
Encalhados (Laggies, EUA, 2014) de Lynn Shelton

Laggies é mais um braço na carreira cômica de Lynn Shelton. O filme, agridoce em relação à crise de meia-idade e também com o paralelo dos resquícios que a adolescência deixa na vida adulta, mais parece uma tese (ou afirmação) da exatidão narrativa da comédia americana dos anos 00.

O Apostador (The Gambler, EUA, 2014) de Rupert Wyatt
 
O filme começa com duas sequências intensas de cerca de quinze minutos cada exibindo a dupla relação do professor (e apostador, claro) Jim Bennet (Mark Wahlberg) com o real - em duas situações de derrota. Da meia hora inicial ao fim, Wyatt faz o trabalho de desinflar lentamente o que começou com tanta força enquanto o filme se desenvolve preso à coragem do protagonista em lidar com alunos e mafiosos com a mesma audácia. O  mais interessante em O Apostador é como Wyatt traz frescor no conto de coragem de Bennett e como ela está presa à utopia da riqueza e a certeza da autodestruição.
 
Da Sweet Blood of Jesus (Idem, EUA, 2014) de Spike Lee

O Nosferatu de Spike Lee. Ainda mais frágil que o de Herzog e mais interessado na tradução dos valores do negro americano nos tempos de Barack Obama, Lee faz uma espécie de filme mudo, regido por canções-emblemas ao espírito que é sugerido (de Milton Nascimento a Nas, passando por Jorge Ben e The IZM), onde um vampiro é entusiasta da cultura africana e temeroso às distorções que a cultura afro-americana sofreu, espelhada, novamente por uma igreja protestante do Brooklyn. Da Sweet Blood of Jesus é o mais corajoso dos filmes de Lee pois, fora os documentários, está na fronteira entre o seu universo particular e o gênero que por vezes o tira do que lhe é costumeiro (Oldboy, O Plano Perfeito, Milagre de St. Anna). 

Laços de Sangue (Blood Ties, EUA, 2013) de Guillaume Canet

Impressiona ver o nome do jovem ator francês Guillaume Canet na direção de um filme que se passa nos anos 70 e em Nova Iorque. Impressiona também a logo da competição de Cannes no início do filme. E ainda mais o nome de James Gray envolvido neste projeto, pois o que se vê é um esforço para tornar um thriller diluído em um arco dramático construído com muitas saídas como forma de representar um estado de espírito deixado no início dos anos 90 na cidade. Canet não torna os irmãos, extremos na história, em extremos narrativos. Como estarão grudados, seja pelo roteiro ou pela montagem, o filme se resume a atrair a noção de que há uma distância gigantesca como a de um abraço. Tão grande quanto a diferença entre polícia e criminoso.

 
A Entrega (The Drop, EUA, 2014) de Michael R. Roskam

Debut de Roskam no mercado americano, A Entrega é uma brincadeira com a previsibilidade e a quebra de ética envolvendo a máfia russa e laranjas americanos em local ermo. A sugestão se sustenta por tão pouco tempo que o filme esbarra no ridículo diversas vezes, principalmente por agregar seus intentos de modo que tudo funcione contra a história.

 Julho Sangrento (Cold in July, EUA, 2014) de Jim Mickle

Mickle volta a flertar com o cinema noir, desta vez pelo pessimismo. Quando  mais se aproxima de um caso, pior ele fica. Desta forma, o filme toma outro viés, o de  conto moral por essência, no qual a paternidade é o pilar. Como Somos O que Somos, filme anterior de Mickle, a atmosfera é impactante, mas se esvazia pelo roteiro fragilizado.

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